segunda-feira, 1 de junho de 2009

A polêmica do choque


Estou tonto, falta-me o ar. Só ouço as batidas do meu coração. Minhas pernas estão tremendo, acho que vou desmaiar. (...) O enfermeiro pediu que abrisse a boca, e por ela enfiou um tubo preto, oco, de borracha. Disse que mordesse com força. (...) Passou uma coisa gordurosa em minhas têmporas. Eu não conseguia mais raciocinar – estava paralisado. (...) Só escutei parte do meu gemido. Perdi os sentidos.” A descrição feita por Austregésilo Carrano no livro dele, “Canto dos Malditos”, é de uma das mais de vinte aplicações de eletroconvulsoterapia (ECT), conhecida como eletrochoque, recebidas nos 4 anos de internações psiquiátricas depois que o pai de Carrano achou maconha no bolso da jaqueta do rapaz, em 1976. O livro de Carrano inspirou o filme “O Bicho de Sete Cabeças” e ele se tornou um militante contra aquilo que chamou de “chiqueiros psiquiátricos” e suas práticas de “fritar as pessoas”, até sua morte em 2008.

No caso dele, o eletrochoque era usado como medida punitiva, já que ele não apresentava qualquer problema mental. Mas há psiquiatras que acreditam que a eletroconvulsoterapia, que provoca convulsões artificiais através de uma corrente elétrica aplicada nas têmporas de pacientes com transtornos específicos, se feita corretamente, pode salvar vidas. Sérgio Paulo Rigonatti, coordenador do serviço de ECT do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo é defensor da prática. Ele explica que a descarga funciona para ordenar o cérebro, como se a mente fosse uma usina elétrica falhando, que recebe uma carga de energia a mais e volta a funcionar. “No império Austro-Húngaro (década de 30) médicos observaram que quem que sofria de epilepsia melhorava de delírios. Isso não é verdade, mas as pesquisas produziram as terapias convulsivas”, conta.

A equipe de Rigonatti atende cerca de 20 pacientes por dia, que chegam de todos os cantos do País, para as sessões de ECT. O tratamento inicial prevê 12 sessões, duas por semana, e é indicado para depressões graves, mulheres grávidas que não podem tomar medicações, idosos, alguns quadros psicóticos, mania e catatonia. Mas a grande campeã é a depressão, segundo o psiquiatra Eduardo Aratangy.

O Instituto inspira confiança. Reformado recentemente, é bonito, moderno, tecnológico. A enfermaria do ECT é pequena, com boxes para três ou quatro macas, e os aparelhos ficam dispostos sobre pequenos armários onde se guardam protetores bucais descartáveis e outros aparatos. Aratangy explica que, hoje, o paciente é anestesiado para não sentir as contrações, parecidas com cãibras por todo o corpo e que, eram responsáveis por fraturas, pelo sacudir violento dos braços e pernas. Os protetores bucais, que substituíram os tubos de borracha, evitam que o paciente morda a língua ou quebre os dentes. O procedimento é feito em jejum, por causa da anestesia e também para que o paciente não aspire o próprio vômito ou água. Segundo Aratangy, tudo dura cerca de 1 minuto. Depois, os pacientes são levados para o outro lado do biombo, entre as duas salas, para se recuperar da confusão mental. No dia da visita, havia quatro pacientes na recuperação. Três idosos e uma mulher. Todos olhando fixamente para o nada. Na sala de espera, um marido agitado, diz que a esposa e a filha estão sob os cuidados de Rigonatti há algumas semanas. “Sofri 5 anos tentando cuidar sozinho delas. Perdi o emprego, chegamos a dormir amarrados, para que não fugissem ou tentassem se matar.”

Do outro lado dessa corda, está o psiquiatra e fundador do Movimento Antimanicomial Paulo Amarante. “Nós já conseguimos resultados ótimos acompanhando e tratando pessoas desenganadas por essa psiquiatria de remédios.” Ele acredita que é preciso considerar o social na doença psiquiátrica: “Nem sempre o sofrimento tem fundo químico. As pessoas sofrem de miséria, fome, violência sexual.” Amarante afirma que nunca receitou o ECT: “Acho que foi pouco pesquisado e os efeitos colaterais ainda não são conhecidos. Também acredito que a confusão mental, a perda de memória e as dores de cabeça (que acontecem depois da recuperação por conta da forte contração muscular) não valem à pena.”

Os dois psiquiatras concordam em alguns aspectos. Rigonatti também vê o ECT como algo que precisa de novos estudos e pesquisas. E admite que nas décadas de 60 e 70, o eletrochoque era usado como instrumento de tortura e de caráter punitivo. “Cansei de ver psiquiatras frustrados dando choque em quem não precisava.” Mas discordam radicalmente quanto à eficácia do tratamento. “É uma medida paliativa e de resposta imediata apenas. É mais fácil dar um choque e trancar do que tratar”, acredita Amarante. Já Rigonatti diz que é importante desmistificar o tratamento: “O número de óbitos é de um para cada 100 mil aplicações e a resposta é rápida. Além disso, hoje, ninguém é obrigado a se submeter ao procedimento. Se o paciente não quer, assina um termo de responsabilidade e vai embora.”

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